segunda-feira, 30 de abril de 2012

Não sentimos falta de algo até experimentarmos


O menino, perdido no imenso corredor do hipermercado, admirava a prateleira com geleias. Ficou alguns minutos ali, diante dos vidros coloridos.  Até que escolheu um e se aproximou de uma senhora, no outro corredor, que examinava o preço do sabão em pó.
__ Mãe, vamos comprar isso?  Pede o menino, mostrando o produto.
__ Não. Respondeu a mulher sem tirar o olho do sabão em pó.
__ Por quê?
__ Porque não!
__ Mas eu nunca comi isso.
__ Por isso mesmo. Se você nunca comeu, você não sabe se é bom ou ruim. Então, melhor não experimentar e continuar sem saber.
O menino voltou cabisbaixo e devolveu a mercadoria sem questionar mais.
Eu, que fazia minha compra rotineira, parei um momento e fiquei olhando para aquela criança. Não sei quando ele vai descobrir que gosto tem a geleia que queria experimentar. Talvez nem goste! Mas o fato é que a resposta da mãe me fez refletir. Não sentimos falta de algo até experimentarmos. Depois, o supérfluo acaba virando necessidade básica. 
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sábado, 28 de abril de 2012

Explicando para o filho sobre o imposto de renda

Ilustração de Tiago Silva, para o Jornal Correio do Cidadão


Meu filho, curioso, se aproxima da tela do computador:
__ Mãe, o que você está fazendo?
__ Declaração de imposto de renda.
__ E por que você tem que fazer isso?
Conhecendo bem a figurinha, já devia esperar por essa pergunta. Mas estava tão preocupada em baixar o bendito do programinha e fazer logo a tal da declaração (como sempre,tudo na última hora) que nem dei atenção. Continuei com olhos fixos no computador.
__ Mãe... mãe? O que é imposto de renda? E por que você tem que fazer essa declaração?
Não teve jeito. Melhor parar e tentar explicar.
__ As pessoas que recebem acima de um determinado valor por ano precisam fazer declaração de imposto de renda.
Disse isso com certo orgulho de mim mesma. Como se eu fosse parte de uma elite sortuda. Que maravilha! Fazer declaração de imposto de renda. Isso quer dizer que temos um salário. E que não é o salário mínimo! Não é todo mundo que tem esse privilégio! De repente aquele formulário chato nem pareceu mais tão chato.  Mas meu filho parecia querer mais explicações.
__Funciona assim: o governo desconta do meu salário, todo mês, um valor. E uma vez por ano eu tenho que preencher um formuláriozinho para provar a eles quanto eu recebi por ano e quanto eu paguei de imposto de renda. É mais ou menos isso.
__ Mas se eles já descontam do seu salário, por que você tem que provar quanto pagou? E você me disse que é funcionária do governo, então eles não deveriam saber quanto você recebe por ano?
__É...mas também tenho que declarar meus bens e meus dependentes (mais dependentes do que bens) e quanto eu gasto... Para o governo ver quanto sobra.
__ Mas não sobra nada. Você sempre gasta tudo né, mãe!
__ Não sobra mesmo. E boa parte do que eu ganho ainda fica para o Leão.
__ O quê?
__ Nada não.
__ Então as pessoas bem ricas pagam muito imposto de renda?
__ Teoricamente sim. Mas, os mais ricos dão um jeitinho de pagar menos.
__ Como assim?
__ Ah, deixa pra lá. É meio complicado para você entender.
Lógico que não disse pra ele que eu também não entendo.
 __ E o que o governo faz com o dinheiro do imposto de renda?
Que vontade de dizer  “para de fazer pergunta difícil, moleque!”.
__ Eles têm que investir em coisas para as pessoas, por exemplo, construir escolas, pagar os professores...
__ Quando comprei uma batata frita e você falou que era muito caro por causa do imposto, você disse que o dinheiro do imposto da batata era para essas coisas.
__ Sim. Mas eles também investem em saúde. Tipo, pagam médicos e enfermeiros, reformam hospitais...
__ Hum... Então por que você paga plano de saúde?
Tentei encurtar a conversa. Disse que era uma longa história e que outra hora eu contava, pois agora precisava terminar a declaração porque se passasse do prazo eu teria de pagar multa, meu CPF poderia ser bloqueado e eu até poderia ficar sem receber meu salário.
__ Que negócio esquisito!
Pensativo, foi saindo de perto sem perguntar mais nada. Melhor não correr o risco de fazer a mãe ficar sem salário.
Imagem encontrada por acaso nas redes sociais!


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quinta-feira, 26 de abril de 2012

Maria não é vagabunda


Primeiro dia de aula. Maria nem acreditava que finalmente tinha conseguido entrar naquela famosa universidade. E no curso de Direito, como sempre sonhou!
Como todo calouro, andava perdidinha pelos corredores da instituição. Até que alguém lhe entrega um panfleto: manual de sobrevivência do calouro. Respirou aliviada. Que bom que agora teria algumas dicas de como agir dentro da universidade. Nada melhor do que contar com a ajuda de quem já está lá dentro há mais tempo. Antes mesmo de olhar para o papel ficou orgulhosa da sua turma de veteranos (que nem conhecia ainda) pela iniciativa.
Mas, ao bater o olho na capa do material já ficou decepcionada e bastou uma folheada  para que seu orgulho se transformasse em vergonha alheia. Entre os absurdos que estava lendo, encontrou a afirmação de que a garota tem “obrigação de dar”. Como assim? Maria ficou indignada. Ela tinha essa capacidade de se indignar quando se deparava com algo que acreditava ser injusto. Talvez esse tenha sido um dos motivos que a levou a escolher aquele curso. Quem sabe estivesse muito “ por fora”, muito ultrapassada, mas não conseguia parar de pensar que quem elaborou o tal do material não tinha nada a ver com a imagem de estudantes de Direito que esperava encontrar. 
Estava se sentindo um objeto. Então era assim que os universitários viam as mulheres! Seu sentimento de raiva foi pior do que quando tentou argumentar com a tia que a frase “atrás de todo grande homem existe uma grande mulher” era preconceituosa e a tia não via nada de preconceito nisso. Estava mais revoltada do que aquela vez na igreja quando ouviu o representante da pastoral familiar dizer que para um casamento dar certo, a mulher deve obedecer ao homem. Quanta evolução! Será que teremos de queimar sutiãs em praça pública novamente? Pensava Maria.
Aquele folheto ia contra tudo o que acreditava e tudo o que defendia. Frustrada, foi conversar com algumas pessoas que pareciam sensatas, e ouvia sempre a mesma coisa: “relaxa caloura, é só uma brincadeira!”. 
Ficou tão desanimada que pensou até em mudar de universidade. Mas, alguns dias depois, viu na imprensa que em outra famosa universidade, coincidentemente alunos do seu curso, faziam um ritual idiota, no qual as calouras tinham de afirmar que eram vagabundas e desfilar mostrando seus corpos para a alegria dos veteranos. Mais uma vez, indignação total. Ficava mais revoltada quando ouvia seus colegas de turma repetirem: “é só uma brincadeira”.
O comentário de um leitor em uma das notícias que leu dizia, tentando defender os estudantes, que não se pode levar a sério, “eles são muito imaturos, são crianças ainda”. A maturidade está cada vez mais atrasada nesse país. Maria lembrou que ouviu a mesma coisa uma vez quando alguns jovens “bem criados” atearam fogo em um índio: “eles são apenas crianças”.
Quando desabafou para uma amiga sobre sua decepção com os últimos acontecimentos, a amiga a aconselhou a desistir do curso e fazer engenharia numa cidadezinha no interior do Paraná. “Amiga, aqui não tem nenhum ritual imbecil, nenhum manual idiota e as calouras são respeitadas. E até tem uma faixona amarela na entrada da universidade que diz que trote é proibido. A única coisa machista que eu presenciei aqui  foi ir para a balada e ser obrigada a ouvir as letras de algumas músicas chamadas de sertanejo universitário que detonam com as mulheres e muitas delas nem percebem.”
Maria respondeu com a frase de uma música de uma de suas bandas favoritas: eu não vim até aqui pra desistir agora!
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sábado, 14 de abril de 2012

Campus ou Câmpus?



Quando comecei a faculdade, logo na primeira aula de latim, meu professor disse que não era para ficarmos com medo da matéria, pois latim era fácil, segundo ele, era “pura matemática”. Como não se assustar? Escolhi fazer Letras justamente porque não gostava de matemática! Senti que estava no curso errado.
Criei certo preconceito em relação ao latim. O resultado foi um exame nessa disciplina já no primeiro ano do curso. No ano seguinte, descobri que latim era legal (engraçado que o professor era o mesmo). Finalmente consegui entender aquelas declinações e compreender o que era genitivo, ablativo, vocativo e outros nomezinhos que agora já não lembro mais.
Esses dias fui me confessar e enquanto aguardava na fila (sim, existe fila até para se confessar, depois de tanto tempo sem contar meus pecados para o padre, não me lembrava mais que tanta gente o procurava para fazer a mesma coisa) lia um livro chamado “A língua escravizada”. Quando entrei no confessionário com o livro na mão o padre me perguntou do que se tratava a obra. Comecei a explicar, mas ele me interrompeu para me contar com orgulho que falava latim, grego, italiano e até alemão (penso que alemão é muito pior que latim). Disse a ele que tinha estudado latim na faculdade e ele começou a me testar usando umas expressões religiosas nessa língua. Claro que eu não me lembrava de quase nada. Por fim, ele criticou as escolas atuais por não ofertarem mais aula de latim e disse também que a língua portuguesa está cada vez mais “perdida”. Se ele tivesse me deixado explicar o livro, ia dizer que o autor falava justamente da evolução da língua.
Nossa conversa foi tão longa que quando saí do confessionário todos os que estavam na fila ficaram me olhando como se eu fosse a mulher mais pecadora do mundo. Como se eu tivesse deixado Maria Madalena no chinelo. Só não me apedrejaram porque eles também tinham pecados, ou não estariam na fila. Mas o pior é que de tanto ouvir o padre falar, esqueci quais eram os meus pecados. E ainda saí de lá com uma sensação de que teria de voltar outro dia para pedir perdão por ficar pensando que os padres são todos arrogantes.
Mas os padres nem usam tanto as expressões latinas quanto esse pessoal aí do judiciário. Como eles gostam de buscar umas palavrinhas lá no Lácio! Recentemente estava assistindo a uma palestra de um procurador e quase perguntei se não teria tradução simultânea. Acho que a única expressão que entendi foi longa manus (por motivos óbvios)Ao final da palestra, lembrei-me de uma frase que um advogado amigo meu sempre usa: Dura lex, sed lex.

Sinto que o latim anda me perseguindo ultimamente. Fui ler numa rede social a notícia que um professor postou sobre a aprovação de um programa de doutorado na universidade que ele trabalha. Depois de inúmeros comentários dos leitores parabenizando a equipe por ter conseguido tal aprovação, eis que aparece o comentário de outro professor avisando o autor da notícia que a grafia da palavra câmpus estava errada. Segundo ele, deveria ter sido escrito campus (em itálico e sem acento), uma vez que era uma palavra latina. De repente, parece que começaram a dar mais importância para bendita palavra do que para o programa recém-aprovado. A discussão foi longe, mas pelo menos serviu para quem não sabia aprender que as duas formas estão corretas. Por enquanto!

Ps. Em latim: o campus (singular) e os campi (plural). É estranho mas é assim mesmo!
Se quiser usar a forma aportuguesada, use câmpus (tanto no singular quanto no plural).

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sexta-feira, 6 de abril de 2012

A vingança de Joãozinho



Alguns leitores me alertaram que o personagem da minha última crônica – o Joãozinho – poderia me processar. Achei muito estranho. Nunca tinha visto na história da literatura um personagem processar o seu autor. Mesmo assim, fiquei preocupada e fui me informar a respeito para ficar preparada para minha defesa, caso isso realmente acontecesse.
Depois de uma busca minuciosa pelos arquivos históricos nas bibliotecas mais conceituadas do país, descobri que (pasmem!) existem muitos casos de personagens que processaram seu autor. Imaginem que a Capitu, uma das personagens femininas mais famosas da Literatura Brasileira processou Machado de Assis. Consta no processo que a personagem do livro Dom Casmurro afirma que Machado denegriu sua imagem, fazendo os leitores acreditarem que ela tinha traído seu marido Bentinho com seu melhor amigo, o Escobar. Capitu olhou para o juiz, com olhos de cigana obliqua e dissimulada, e começou a chorar dizendo que todos os leitores estavam acreditando que ela era uma piriguete.  Depois de muita polêmica, o processo foi arquivado porque a justiça entendeu que em momento algum do livro, Machado de Assis afirma que Capitu realmente traiu seu esposo.  “ Foi coisa que colocaram na cabeça de Bentinho”, disse o juiz.
Descobri também  que numa obra mais recente “A hora da estrela”, a personagem Macabéa também processou sua autora, Clarisse Lispector. Fiquei chocada! Justo a Macabéa, tão ingênua! Pesquisando melhor descobri que aquele vigarista do Olímpico de Jesus é que estava por trás. Lógico, dinheirista do jeito que ele é, queria levar uma graninha da Clarice. Coitada da Macabéa, foi usada!  No processo  constava que Macabéa se sentiu humilhada pela maneira como Clarice a descreveu. A autora deu a entender que Macabéa era muito relaxada ao dizer que ela comia o frango que deixava debaixo da cama à noite ; que suas roupas eram encardidas e que ela sujava as folhas que colocava na máquina para datilografar. Mas o processo também não deu em nada porque na hora do julgamento a única coisa que Macabéa conseguiu falar foi “O senhor me desculpe o aborrecimento” e acabou retirando a queixa contra Clarice.
No final do século XIX, o marido da  Sra. Emma Bovary, o médico Charles Bovary, também entrou com um processo contra Gustave Flaubert. Madame Bovary, como ficou conhecida, certamente teria, ela mesma, processado seu autor se não tivesse cometido suicídio no final da história. Charles alega que Flaubert acabou com a saúde da sua esposa  e com o seu casamento feliz inventando aquelas calúnias. Onde já se viu – argumentava Charles – Emma Bovary era uma senhora de respeito e Flaubert a descreve como uma pervertida.  Não tive acesso a esse processo, mas dizem as más línguas que Flaubert teve de indenizar Charles por danos morais.  Flaubert até que tentou se defender dizendo a célebre frase "Emma Bovary c'est moi” (Emma Bovary sou eu), mas não adiantou.
Porém,  não poderia me basear apenas em  romances já que meu  texto em questão era uma crônica. Então fui pesquisar os cronistas brasileiros mais conhecidos e descobri que quase todos já sofreram algum tipo de processo. Imaginem que o Homem Nu (ele não tem nome) processou Fernando Sabino; O Homem Trocado (Lírio ou Lauro?) processou Luiz Fernando Veríssimo; Rubem Braga também já sofreu alguns processos;  até Carlos Drumond de Andrade e Manuel Bandeira já foram processados!
Então, que venha o Joãozinho com suas acusações! Acho que estou preparada. Procurei os melhores advogados da Literatura para me defender.
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